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E A CULTURA COME A ESTRATÉGIA À NOITE NO ESTACIONAMENTO

Escrito por Marco Ornellas

Poderia começar essa reflexão sobre os acontecimentos da última semana com a frase celebre de Peter Drucker “a cultura come a estratégia no café da manhã”.  Ou de uma maneira mais poética, como em Hamlet, quando o protagonista diz que é preciso “ajustar o gesto à palavra e a palavra ao gesto”. De qualquer forma, a pergunta é: quantas empresas tem dificuldade em ajustar as palavras de seus Valores às suas Práticas, Políticas e Ações? Quantas empresas têm convergência e coerência entre sua Estratégia e sua Cultura? Clientes destratados, funcionários humilhados, descaso com meio ambiente, fornecedores desrespeitados e esfolados em mesas de negociação, preconceitos e inclusão inexistente, pactos e compromissos não cumpridos? Quantos casos como esses não conhecemos e sabemos que são frequentes em diversas empresas? Tenho dito que vivemos em uma sociedade doente e que não podemos simplesmente querer adaptar ou ajustar um sistema doente. É preciso ir mais fundo, é preciso mudar a cultura. Estamos em uma era de ampliação da consciência sobre O QUE SE FAZ, PORQUE SE FAZ e COMO SE FAZ, em um novo mundo que não cabe mais falar ou mostrar; é preciso ser. Cada vez mais, empresas vão entender a importância de desenvolver uma sensibilidade em relação aos desejos e necessidades dos consumidores, sendo coerentes com suas ações concretas. Se entrarmos em diversos sites de grandes companhias e formos até a área Institucional, vamos encontrar declarações de Valores e Propósito. Curiosamente, são sempre muito parecidos, seguindo uma mesma linha, onde se valoriza consumidores e colaboradores. Mas o quanto dessas palavras está presente no dia a dia dessas empresas? No site do Carrefour, podemos ler o que declaram ser Nosso Propósito: Ser o varejista mais querido e preferido do Brasil, reconhecido por sua excelência e inovação, com uma equipe que age com colaboração, responsabilidade e paixão, cuidando da nossa gente e de todos os detalhes para encantar o nosso cliente. Impossível ler esse texto hoje, depois da morte de João Alberto Silveira Freitas, e não perceber a ironia e a tristeza que essas palavras trazem. Quase uma peça colocada no site e longe de ser o modelo de gestão que suporta esses valores. A pergunta que fica é: Qual a verdade que realmente o Carrefour quer? O que ele quer ser? É preciso “ajustar o gesto à palavra e a palavra ao gesto”. Declarar propósito e valores em seus sites, é algo que toda empresa faz. Mas sempre que um caso como o do Carrefour acontece, fica evidente que muitas vezes se trata apenas de palavras vazias, sem significado prático. A cultura ou o modo de ser da empresa não é de fato orientada por essas palavras. Dizer que cuidamos das pessoas, que somos sustentáveis, que o cliente está em primeiro lugar, são compromissos explícitos que muitas vezes não estão alinhados com o modo da organização de fazer e tocar o seu negócio. Cultura é a maneira como as organizações se posicionam, se comportam, se relacionam, é o conjunto de hábitos e crenças estabelecidos através de normas, valores, atitudes e expectativas compartilhados por todos os membros da organização. A essência da cultura de uma empresa é expressa pela maneira como ela faz seus negócios, a maneira como ela trata seus clientes e funcionários, se relaciona com o mercado, fornecedores e a própria sociedade. Cultura é algo que a empresa É e não algo que ela TEM. No caso Carrefour, temos reincidência de comportamentos que contradizem o propósito desenhado nas paredes. Em 2018, o país ficou chocado com a morte brutal de um cachorro na loja de Osasco da rede. Em um acordo com o Ministério Público, foi definido o valor de R$ 1 milhão como forma de compensação. Um prejuízo financeiro e de imagem para a empresa, mas que não serviu para chamar atenção para a sua equipe de segurança e a contradição interna. Antes disso, em 2015, também em Porto Alegre, mas em outra loja, um cliente chegou a ser chicoteado pelas seguranças, que o levaram para uma sala onde aconteceram as agressões. O interessante é que foram condenados a pagar para a vítima apenas R$ 15 mil reais, muito menos que no caso do cachorro. Ainda tramita outra ação na Justiça, onde dois clientes foram agredidos e tiveram o carro chutado por seguranças. Cada um vai receber 10 mil reais e ter os custos de reparação do carro cobertos. E então, chegamos a João Alberto. Morto aos 40 anos no estacionamento, por seguranças terceirizados da loja, sob os olhares de outros consumidores e de uma fiscal. Uma morte que claramente poderia ter sido evitada. Sinais para isso não faltaram. Mas talvez a empresa tenha acreditado no próprio conto que criou, que se esforçava para “encantar o cliente”. Quantas outras empresas não repetem esse mesmo enredo? O preço a ser pago, quando não há esse casamento entre intenção e ação, é muito alto. O Carrefour tem nos ensinado isso ao longo dessa semana. Em uma primeira ação, a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul pediu uma indenização de R$ 200 milhões, por danos morais coletivos e sociais. Após o assassinato, houve uma perda de dois bilhões de reais na Bolsa de Valores. Como perdas financeiras, talvez sejam até pequenas, se comparadas ao lucro histórico que a companhia atingiu nesse ano, mesmo em meio a pandemia. Mas e a perda em termos de imagem, agora que está em curso uma campanha de boicote mundial, com o caso sendo repercutido pelo movimento Black Lives Matter e por celebridades como Lewis Hamilton. Há muito que mudar na cultura das organizações e na sociedade. Mas também há bons sinais no horizonte. Exatamente uma semana depois do Dia da Consciência Negra, temos a Black Friday. Ou Beauty Week, Red Friday e Best Friday, os nomes adotados por Boticário, Americanas e Avon, respectivamente, para celebrarem a data a partir desse ano. Essas mudanças aconteceram porque o termo Black Friday é visto como pejorativo por parte dos consumidores negros, daí a sensibilidade e – por que não dizer? – coerência dessas duas marcas em abrir mão do nome que todos usam e criar os seus próprios. Isso talvez tenha demandado um esforço maior de comunicação, mas com certeza, vão lucrar muito em termos de imagem, reputação e coerência. O repúdio ao nome não é um consenso entre todos os consumidores negros, já que alguns disseram que não se importam. Mas há os que se importam. Sendo assim, vale a pena insistir em um termo que possa ser ofensivo para alguns? Boticário e Avon responderam essa pergunta com sensibilidade afinada aos novos tempos. Só precisamos torcer para que elas sejam a regra, não a exceção. Fica aqui uma dica final: se não mudarmos as entranhas da cultura e das crenças mais profundas, os compromissos por mais que sejam explícitos não serão colocados em prática. Pessoas, Estrutura, Processos, Tecnologias, estão a serviço da cultura e não das intenções muitas vezes rasas e marqueteiras de frases bonitas. Apesar de otimistas, sem essas mudanças, ainda ficaremos muito envergonhados com os acontecimentos que estão por vir.   Artigo escrito por Marco Ornellas – Consultor e CEO da 157next.academy
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