Curadorias

Sobre quais lentes você vê o mundo?
Artigo de Thiago Saldanha

Gostaria de começar esse texto com uma história que eu vivi e que acho que pode ser bem ilustrativa para nossa reflexão. Eu estava facilitando workshops de comunicação para uma grande empresa que tinha escritórios em quase todos os estados do país. Certa vez, na turma de Porto Alegre, um participante relatou como era difícil para ele ser visto como uma pessoa “grossa” por colegas da companhia. Ele dizia que jamais desrespeitou alguém e que o que valorizava muito ter esse cuidado nas relação que estabelecia. Pedi que a gente fizesse uma simulação de uma situação em que ele foi visto dessa forma e algo curioso aconteceu. Após rodar a simulação, uma outra participante disse que não o interpretaria como “grosso”, mas como uma pessoa objetiva e pragmática, que queria resolver a questão relatada com eficiência. O que faz com que uma pessoa seja vista ao mesmo tempo como “grossa” por uns e objetiva por outros?

Cada pessoa tem um par de lentes por meio das quais vê e compreende o mundo. Essas lentes não podem ser compradas, elas são lentes sociais que vão se construindo à medida que cada um de nós vive a vida que temos. Ela é formada pelas nossas experiências, pela educação que tivemos em casa, pelo colégio que frequentamos quando crianças. Não tivemos propriamente uma escolha sobre essas lentes, parte da formação delas foi quando ainda éramos muito novos, pouco conscientes sobre nosso poder de escolha e apenas reagíamos aos estímulos que recebíamos das pessoas que cuidaram de nós. Traumas que tivemos marcam essas lentes, felicidades e conquistas também. A cor da nossa pele e como essa cor é tratada socialmente também é impresso nessas lentes, assim como o trato social que nosso gênero e orientação sexual recebe também constitui nossas lentes. Elas são um grande amálgama das nossa experiência de humanidade, sendo quem somos, na sociedade em que em que crescemos, nos desenvolvemos e vivemos.

Sabe quando você vira para um amiga e fala: “como você não está vendo isso? Não é possível…” No entanto, pode ser possível que ela de fato não esteja vendo. O contrário também já pode ter acontecido como quando você diz para um amigo: “Cara, como que você viu isso? Para mim, aconteceu uma outra coisa…” Mais uma vez, pode ser mesmo que ele tenha visto algo completamente diferente de você. É um jogo complicado, pois o que vemos revelam as lentes que temos, que por sua vez são constituídas pela nossa história. Logo, poderíamos dizer que o que vemos fala mais sobre nós do que sobre o que está em nossa frente, certo? Nem certo, nem errado. Pelo que tenho experimentado me parece ser um pouco mais complexo e menos binário do que isso. O que vemos também revela algo sobre o que estamos observando ao mesmo tempo que revela algo sobre nós. Se deu um nó na sua cabeça, respira, quero avançar mais um pouquinho.

nossas lentes são únicas e contam muito sobre quem somos. mas como fazer para ampliá-las?

Vamos lá: se minhas lentes de percepção da realidade são únicas e contam muito sobre quem eu sou, como que eu sei que o que estou vendo, ouvindo e compreendendo é real? Essa é uma pergunta que me atravessa faz algum tempo e que a resposta para ela é uma construção, um caminho. Gostaria de compartilhar o ponto desse caminho que estou no momento.

1. Questiono, constantemente, minha capacidade de compreensão
Não é sobre ter menos autoconfiança, mas sim uma prática de humildade, um entendimento de que eu não posso saber o que se passa com o outro ou quem essa pessoa na minha frente de fato é. Rotular pessoas é algo que fazemos automaticamente: ele é grosso, ela é lenta, ele está tentando passar a perna em mim, ela não liga pra mim, ele só pensa nele. Pessoas não são resumíveis a um verbo no presente. Qualquer palavra que você coloque depois do “é” será insuficiente para descrever completamente um ser humano ou uma situação. Minha lente me permite ver apenas uma pequena fatia da realidade, por isso eu preciso de outrem, pois a realidade pra mim se forma quando cada pessoa junta seu pedacinho. Como num quebra-cabeça, a imagem se forma no encontro das peças e cada pessoa tem uma peça dessa imagem.

2. Tento, o quanto é possível, experimentar outras lentes.
Quando tenho abertura e disponibilidade para isso, procuro escutar as pessoas brincando de que eu não tenho opinião sobre ela ou sobre o que ela me diz. As minhas opiniões não param de existir, mas sinto que minha habilidade de escuta é limitada a uma coisa por vez. Então para ouvir outrem, e poder experimentar um pouquinho as suas lentes, eu preciso ouvir menos minhas próprias opiniões. O que acontece então? Posso ver a peça que essa pessoa está vendo e juntar com a minha para ver mais aspectos da realidade que não via antes. E sabe o que eu ganho de bônus? Passo a conhecer mais quem é essa pessoa, nossa relação passa ser mais próxima e nossa conexão se fortalece.

3. Procuro conhecer cada vez mais as minhas próprias lentes
Lembra que nossas lentes são formadas por nossas experiências? Quando uma experiência marca nossas lentes, a gente não recebe uma notificação no app do celular dizendo exatamente o que marcou e como isso afeta a forma como vemos o mundo. Isso é um processo de investigação que acontece ao longo da vida que algumas pessoas chamam de autoconhecimento, a inteligência emocional chama de autoconsciência e eu chamo de curiosidade mesmo. “Por que será que toda vez que tal coisa acontece, eu reajo de tal forma?”. Prefiro lidar com essas coisas como um jogo, um mistério a ser revelado, e apreciar o caminho até a revelação.

Quanto menos nos dedicamos a tentar ver o mundo por outras lentes, mais polarizada nossa sociedade vai se tornando. É muito mais fácil compreender o que pessoas parecidas comigo veem e ouvem e minha tendência automática é me aproximar mais dessas pessoas. Dá menos trabalho. Talvez o “tio do pavê” seja muito difícil, mas olha na sua rede de contatos,  quem tem uma cor diferente da sua, nasceu em um lugar diferente do seu, tem uma realidade econômica diferente da sua. Diminua o volume de suas opiniões e aumente o volume da voz dessas pessoas. Escutar pessoas diferentes de nós, pode ser uma verdadeira revolução.

Até breve!

Com passagens pela Gaia Education, Schumacher College, e anos de prática em Comunicação Não-Violenta, o Thiago, atua hoje na Reúna – uma consultoria que pratica o desenvolvimento da cultura de diálogo em diversas organizações.

https://www.linkedin.com/in/thiago-saldanha-pereira/

Abrir bate-papo
Olá 👋
Como podemos ajudá-lo?