Curadorias

O QUE HÁ ENTRE O ACÚMULO E A MISÉRIA?
Artigo de Vânia Bueno

Me assusta ver como as pessoas reagem diante da possibilidade de perder algum dinheiro. Não falo dos que têm 2 meses de aluguel reservados ou dos que nem isso têm.

Penso naqueles que acumularam fortunas incalculáveis. Desse grupo de empresários e herdeiros que se orgulham de ter começado em uma porta de garagem e agora comandarem impérios corporativos. Cresceram por décadas graças ao seu espírito empreendedor e esforço louváveis, mas também com a contribuição de gente simples que trabalhou pesado e muitos que compram e revendem seus produtos e serviços. Diante do risco, muitos agora pensam muito mais em como proteger seu patrimônio – muitas vezes suficiente para as próximas gerações – do que na sociedade que o gerou.

Privilegiados têm colhido frutos generosos a partir de uma equação desigual que faz com que 1% das pessoas acumulem a riqueza dos outros 99%. Mas esta é a lei de mercado vigente, então acumular riqueza não é crime e é compreendido, até aqui, como ético.

Agora, quando enfrentamos um momento e desafio novos, me impressiona a resistência dos velhos padrões diante de um contexto completamente modificado. Uso um exemplo mais próximo: ouço amigos se queixando das perdas na bolsa. Claro que isso é preocupante, mas pior é perceber que se relacionam com o fato como se fosse uma foto e não um filme. Ficam impactados com a perda do mês, sem conectar este episódio à linha do tempo, que durante meses e anos mereceram a celebração de lucros acima do esperado. É como se o que perdem hoje não tivesse absolutamente nada a ver com o ganharam no passado. Como se não fizesse parte de uma contabilidade maior que honra e considera o vivido, e não apenas se queixa do presente e teme e o futuro. É como se cada ano, trimestre ou mês fosse um acontecimento isolado e tivesse a obrigação de gerar apenas lucro. Se não ganhei agora, estou perdendo. Então, preciso me proteger. Como assim? A perspectiva de tempo e de resultados dessa forma de compreender a vida e tomar decisões, parece completamente equivocada e injusta.

Vemos uma pressão enorme sobre o governo, e está certo. Precisamos de medidas de estado, mas ainda sinto falta do maior protagonismo da iniciativa privada. Das empresas e das fortunas, espero mais do que filantropia e uso das fábricas para a produção de álcool gel, ou o patrocínio de cestas básicas, mesmo que sejam de enorme valor. É preciso reconhecer e aplaudir cada gesto.

Movimentos como #NãoDemita são mais estruturantes e significativos, Parabéns!!!! Mas será que não dá para fazer mais? Ao invés de esperarem por uma taxação das grandes fortunas – o que daria ao governo poder sobre um recurso que muito provavelmente se perderia no labirinto burocrático e corrupto – por que não tomam a dianteira, reconhecem o mérito da sociedade sobre seu poder e abundância e mobilizam seus pares a oferecer parte do tanto que têm? Sair na frente e oferecer a imensa capacidade de gestão e logística que as empresas desenvolveram. Cuidar de verdade.

Continua uma pergunta sem resposta: o que os bancos Itaú, Bradesco, BB e Santander farão com os R$ 81,5 bilhões que comemoraram recentemente como o maior lucro líquido da história? Terá este valor excepcional o destino de sempre: dividendos legais para os acionistas? Não poderiam ter uma aplicação mais nobre e responsável do que apenas aumentar o número de zeros no saldo de muitos que de nada precisam? São capazes de compreender empaticamente este momento?

Microempresários vão quebrar porque precisam de um fôlego que não têm, aumentando o desemprego. Por que não oferecer empréstimos sem juros e com carência para que possam sobreviver e impedir que a roda pare? Daria para abrir mão das altas taxas que cobram por um serviço que cada vez mais é operado à distância e pelo usuário? Criar novas frentes de sustentação para os mais vulneráveis?

No topo da pirâmide de poder, tenho ouvido que conselhos estão focados nas pessoas, na sobrevivência e no caixa. Certíssimo! Pessoas acima de tudo é a melhor premissa. Quando pensam na sobrevivência e no caixa, pensam nos seus ou em todos? Será que já compreenderam que sua sobrevivência depende, mais do que nunca, da sobrevivência dos demais? Para dar certo vai ser preciso incluir o fornecedor, o cliente, o parceiro, o trabalhador, a comunidade.

O que existe entre o acúmulo e a riqueza? Existe a possibilidade de dar sentido ao acúmulo. Existe a oportunidade de diminuir a dor da miséria. De colocar o melhor do humano em ação: sua consciência e altruísmo. Se não for assim, não faz qualquer sentido.

Até aqui reinou absoluta a planilha de Excel. Cálculos e conjunturas. Excelente! Aprendemos muito. Mas este momento histórico exige alianças entre mentes brilhantes, inteligência sistêmica e corações generosos. Humanos sensíveis e capazes de transformar razão em sabedoria, cálculos em mérito, acúmulo em partilha. Meus amigos me dizem que é pura ilusão. Que isso é impossível.

Eu sigo acreditando que entre o acúmulo e a miséria, cabe este sonho.

 

Vânia Bueno, cidadã e comunicadora que escolheu o desenvolvimento humano, de líderes e de organizações como trabalho e como causa.

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