Curadorias

DESCONSTRUÇÃO DOS NEXOS
Artigo de Daniel Motta

Crises inesperadas produzem mudanças bruscas de paradigmas e aceleram revoluções silenciosas. Em pouco tempo, em um movimento repentino, o mundo conhecido derrete… e, assim, tradições são questionadas, instituições são destruídas, regras tornam-se obsoletas, ícones são desconstruídos.

É claro que isso não nos leva para o vazio….

Entre tudo que julgamos conhecer e o nada que parece se apresentar à medida que perdemos referências usuais, não há vácuo existencial, mas um novo tudo, mesmo que inicialmente desconhecido. Certo que desconfortável, mas ainda assim, tangível e plausível.

A pandemia pop arrasou quarteirões, isolou multidões e destruiu riquezas de todos os lados. Todos ainda assegurando sobrevivência, buscando preservar integridade física e sanidade mental, imersos em um ambiente inóspito, incerto e imponderável. Em paralelo, racionalizando decisões difíceis nos planos profissional, familiar, individual e social. Muitos conflitos de sentimentos e pensamentos, ampliados pelos desafios do isolamento social.

Após algumas semanas de isolamento, uma das perguntas mais instigantes refere-se ao momento pós-pandêmico: como será o nosso mundo após o término do coronavírus?

Compreender que eventos futuros projetam suas sombras muito antes é para poucos. Afinal, é sutil diferença entre o sucesso espetacular de alguns e o fracasso retumbante de outros. A razão fundamental para a vitória aparentemente surpreendente de alguns e para a derrota dramaticamente inesperada de outros. Muito além do impacto do cisne negro no curto prazo, tais diferentes trajetórias de médio a longo prazos são menos aleatórias do que realmente parecem aos olhos desatentos e superficiais.

Qualquer exercício futurista não almeja precisão, mas sim direcionamento…

Abaixo compartilho minha visão sobre o futuro do mundo após pandemia pop:

1 Altruísmo horizontal

Vírus são democráticos. Talvez até mais do que bactérias. Atacam invisíveis de modo indiscriminado. Entretanto, é razoável afirmar que a taxa de letalidade varia conforme indicadores sócio-econômicos, como proxy para qualidade de acesso a medicamentos, nutrição e assistência hospitalar.

Risco de ruptura econômica também é algo bastante democrático. Claro que afeta imediatamente aquelas empresas mais vulneráveis em seus balanços patrimoniais e modelos de negócios (aliás, algo absolutamente natural em uma dinâmica de mercado), mas também afetam sistemicamente todas as empresas caso se reverta em ondas massivas de falências. A deterioração do crédito privado, a ruptura na base tributária pública e a calamidade pública ocasionada pelo desemprego são questões socialmente compartilhadas por todos.

Portanto, parece ser perfeitamente possível imaginar um mundo ligeiramente mais altruísta. Sem dúvidas, não tão solidário como o atual momento do pico pandêmico, mas mesmo assim verdadeiramente mais altruísta em diferentes dimensões. Cooperações entre competidores, responsabilidade social do setor privado, parcerias público-privadas e fomento ao terceiro setor ganharam momentum, e mesmo arrefecidas, devem retornar em patamar superior ao contexto prévio.

2 Vínculos vulneráveis

Seres humanos são animais sociais. O isolamento é uma das maiores violências psíquicas que sujeita o indivíduo ao embotamento emocional e a crises de ansiedade e angústia. Precisamos das interações sociais para nosso próprio fortalecimento.

A vulnerabilidade crescente das últimas décadas evoluiu de modo independente da pandemia. Não foi necessário nenhum vírus para nos tornarmos mais frágeis. Trata-se de um processo contínuo de flagelo institucional das âncoras psicossociais tradicionais (governo, igreja, pátria, família, comunidade, escola, empresa, exército, entre outros) que tornam as relações mais fluidas e quebradiças, onde visualizamos o sucesso da nossa própria imagem espelhada como o objetivo primordial. A vida instagramável é insuportavelmente triste, não obstante a aparente felicidade absoluta das fotos editadas dos nossos personagens públicos.

Após semanas de isolamento, as pessoas sairão de suas casas aliviadas, mas zonzas. Ainda confusas sobre suas percepções introspectivas e seus desejos prospectivos. A vulnerabilidade estava latente mas convenientemente disfarçada em uma vida sôfrega repleta de check-lists, likes, emojis e stories. A latência permanece, o disfarce talvez retorne menos evidente. Em risco fica o patamar de sanidade mental da própria sociedade, e também das organizações.

3 Valor ressignificado

O ímpeto do liberalismo é a maximização do valor econômico como indutor de bem-estar social. A empresa privada bem-sucedida é mais eficiente e inovadora, e isso é absolutamente desejável por todos que acessam bens e serviços cada vez melhores e mais baratos.

Porém, este modelo não necessariamente trata adequadamente de suas externalidades negativas. Agendas sociais e ambientes já estavam na pauta das lideranças empresariais e das autoridades públicas já há alguns anos. Ganhando momentum à medida que as redes sociais aumentaram nível de escrutínio sobre as ações além dos discursos e das propagandas.

Após a pandemia, indubitavelmente a ordem do dia será a ressignificação do valor para algo compartilhado por mais stakeholders. Fica o desafio de equilibrar esta agenda com as pressões crescentes por retornos de curto prazo, impostas por gestores de fundos que precisam remunerar poupanças de uma população cada vez mais envelhecida.

Mas é certo que o novo normal não abrigará empresas autocentradas em suas agendas.

4 Metafísica quântica

A origem de tudo e de todos sempre foi objeto de estudo e devoção da humanidade. Filósofos debruçaram-se em reflexões metafísicas em diferentes épocas. Religiões surgiram em todos os cantos do planeta. Os últimos séculos foram dominados amplamente pelas grandes religiões monoteístas do mundo, com bilhões de devotos orando por seus deuses.

Curiosamente, a pandemia não conclamou legiões de pessoas para rodas de orações compartilhadas pelo mundo, não posicionou as grandes lideranças religiosas globais como protagonistas do movimento dramático dos povos. A ciência, e não a religião, assumiu o timão do mundo nos tempos turbulentos que estamos vivenciando a cada dia.

Vacinas, tratamentos e isolamentos sociais dominaram a pauta midiática e as conversas informais nas mesas de jantar. As orações ficaram em segundo plano diante de uma enxurrada de informações, muitas delas falsas inclusive.

Quando tudo isso acabar, não teremos o apocalipse previsto nos livros sagrados. Mas possivelmente viveremos em um mundo ainda menos espiritualizado em seus hábitos cotidianos. Tecnologia e ciência avançaram um pouco mais, para perplexidade de sacerdotes incapazes de revolucionarem seus próprios modelos operacionais diante de claras mudanças de comportamento do mercado-alvo de jovens fiéis.

5 Individualismo oprimido

Crises conclamam a intervenção governamental. Não pelo governo, mas porque este é afinal a representação política da própria sociedade. É a sociedade que almeja ser protagonista quando percebe que suas instituições sociais não respondem com a velocidade e a intensidade requeridas ao momento crítico.

Mesmo os economistas mais liberais tornam-se favoráveis (ou conformados, pelo menos) com a necessária atuação do Estado no aumento dos gastos, na redução de impostos, na flexibilização de regras em prol do trabalho, na proteção dos pequenos empresários, no aumento da liquidez do sistema financeiro, no socorro aos gigantes empresariais que podem causar risco sistêmico. Déficits nominais são autorizados como cheques pré-datados para as gerações futuras em formato de inflação ou tributação diferidas. Mas o importante é reduzir a profundidade do vale e acelerar a retomada ao patamar de crescimento.

Mas o Estado é um organismo realmente particular em suas idiossincrasias. Uma vez convidado a retornar, é certo afirmar que demorará para abandonar o espaço reconquistado. São raros os estadistas que desejam ser minimalistas – a grande maioria é bem barroca.

O curioso do mundo pós-pandêmico talvez seja o consenso geral dos próprios indivíduos em aceitarem a redução dos seus espaços e direitos em prol de um Estado que os proteja de si mesmos. Algo mais usual na filosofia oriental, e um sacrilégio no culto individualista ocidental. O Big Brother autocrático talvez sobrepuje outros arranjos políticos.

 

Daniel Augusto Motta é Sócio e CEO da BMI Blue Management Institute. Doutor em Economia pela USP, Mestre em Economia pela FGV-EAESP e Bacharel em Economia pela USP. É Alumni OPM Harvard Business School. Atua como Sócio e Diretor Geral da WhiteFox Capital, controladora da Nexialistas e PeopleCraft. Também atua como Diretor de Planejamento Estratégico da UNIBES. É Membro-Fundador da Sociedade Brasileira de Finanças. Foi Professor nos MBAs da Fundação Dom Cabral, Insper, FGV, ESPM e PUC-SP. Atuou como Professor Convidado nos MBAs da Thunderbird School of Global Management e Stockholm School of Economics. É autor de diversos artigos publicados por Valor Econômico, EXAME, VocêSA e Folha de São Paulo, e também tem três artigos publicados pela Harvard Business Review Brasil. É autor dos livros A Liderança Essencial e Anthesis.

https://www.linkedin.com/in/danielmotta/

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