Neste artigo, apresentaremos algumas perspectivas sobre a colaboração em rede fundamentadas principalmente nas pesquisas realizadas pelo biólogo e cientista chileno Humberto Maturana e comprovadas na experiência prática do próprio autor. Pretendemos detalhar uma proposta de criação e sustentação de um movimento em rede colaborativa, onde o Design Thinking surge como metodologia estratégica para transformar ideias em ação, usando uma questão crítica como convite e a energia disponível no sistema como combustível para essa jornada.
No princípio, era o amor. Não o amor romântico. “Eu te amo porque você me faz feliz e me dá o que eu preciso”. Não esse tipo de amor nascido e nutrido pelo egocentrismo e alimentado por expectativas e barganhas. O amor como o espaço de condutas que aceitam o outro como um legítimo outro na convivência. Maturana explica que o início da humanidade deve ter sido o amor porque, para que houvesse uma história de interações recorrentes que permitiria a constituição da linguagem e, portanto, do humano, teve que haver um espaço de convivência onde se deram as coordenações consensuais de conduta que constituem a linguagem, que funda o humano. Parece complicado, mas, basicamente, para que tenhamos desenvolvido um cérebro mais sofisticado, nos distinguindo de outros primatas bípedes próximos a nossa linhagem de hominídeos, nosso convívio teve que ser fundado na confiança e no respeito-mútuos, ou seja, na colaboração, caso contrário, não teríamos desenvolvido a linguagem e seríamos outra coisa e não humanos.
Nem sempre é assim. Mesmo tendo a colaboração na essência de nossa formação como seres humanos, muitas vezes essa palavra é empregada com um significado diverso. Aliás, semanticamente, colaborar quer dizer tanto “trabalhar junto” quanto “fatigar-se, sentir dor junto”. “Labore” é sinônimo de “tripalium” (origem da palavra trabalho), que designava um instrumento de tortura formado por três (tri) estacas agudas de madeira (palum). “Tripalium” passou ao francês como “travailler”, significando “sofrer, sentir dor”, evoluindo depois para “trabalhar duro”. Afinal, trabalhar era apenas para os escravos e os pobres que não podiam pagar os impostos, por isso precisavam ser castigados. E, a ver pelos relatos nas redes sociais e conversas de botequim, muita gente ainda vive o trabalho como tortura. O filósofo Mario Sergio Cortella em um de seus livros mais populares propôs, inclusive, substituir a palavra trabalho por obra. De nada adianta, porém, mudar as palavras sem mudar a dinâmica.
Maturana explica: “O poder não é algo que um ou outro tem, é uma relação na qual se concede algo a alguém através da obediência, e a obediência se constitui quando alguém faz algo que não quer fazer cumprindo uma ordem. O que obedece nega a si mesmo porque, para evitar ou obter algo, faz o que não quer a pedido do outro. O que obedece age com raiva, e na raiva nega o outro porque o rejeita e não o aceita como um legítimo outro na convivência (…) Mas o que manda também (…) Ele nega a si mesmo porque justifica a legitimidade da obediência do outro com sua supervalorização, e nega o outro porque justifica a legitimidade da obediência com a inferioridade do outro.”
Mas… como mudar essa emaranhada dinâmica de poder que impede a colaboração e, portanto, a inovação que pessoas e organizações precisam para continuar evoluindo? É o que iremos ver agora.
Rede distribuída + colaboração = inovação
A comutação de pacotes inventada pelo engenheiro polonês Paul Baran foi uma das pedras fundamentais para a constituição da Internet, na medida em que criou um novo paradigma de comunicação de dados em que pacotes (unidades de transferência de informação) são individualmente encaminhados entre nós ou pontos da rede através de ligações de dados tipicamente partilhadas por outros nós. Mais do que isso, no entanto, aquele que ficou conhecido como o diagrama de Paul Baran acabou se tornando uma peça didática sobre os diferentes modos como uma determinada rede pode se organizar: partindo da rede totalmente centralizada para a totalmente distribuída, ou vice-versa. A grosso modo, uma rede mais distribuída tende a ser um espaço muito mais favorável à colaboração do que uma rede mais centralizada. A razão é simples: sem fluxos de interação, sem possibilidade de colaboração. Outro ponto é que em redes mais distribuídas, relações baseadas na dinâmica da obediência tendem a ser menos frequentes, estabelecendo um espaço mais propício à colaboração.
Em outra forma interessante de descrever esse tipo de rede, Castells fala em “sistemas organizacionais capazes de reunir indivíduos e instituições, de forma democrática e participativa, em torno de objetivos e/ou temáticas comuns.” Dotadas de estruturas flexíveis e cadenciadas, as redes colaborativas, segundo o sociólogo espanhol, se estabelecem por relações horizontais, interconexas e em dinâmicas que supõem o trabalho colaborativo e participativo.
Passo-a-passo para criar e sustentar um projeto de colaboração em rede
Certamente, existem muitas formas diferentes de construir uma rede colaborativa. Pode-se até fazer com que toda uma organização opere nesse modo, configurando-a em torno de um modelo de gestão horizontal. Nossa intenção aqui, no entanto, é apresentar um caminho mais simples e que pode ser implementado até mesmo em organizações mais hierarquizadas. É aí que nos encontramos com o Design Thinking como uma metodologia estruturada para criação e experimentação de novas ideias em pequena escala, que, desde minha prática de consultor e professor, reorganizei resumidamente nos seguintes passos:
- Identifique o desafio estratégico: Qual é a questão crítica que se pretende resolver?
Numa mineradora, a questão que surgiu foi como construir um ambiente onde felicidade e resultados pudessem caminhar juntos. Numa empresa de alimentos, o desafio era transformar a comunicação interna, unindo “high tech” e “high touch”. Já numa siderúrgica, a preocupação era como resgatar o engajamento dos colaboradores numa situação de crise de mercado onde até a alta liderança andava desanimada. Cada empresa ou área – porque o projeto pode ser realizado em qualquer escala – vive seus dilemas estratégicos. Perguntas sem resposta sobre temas críticos para a sobrevivência de um determinado sistema o impulsionam a evoluir, criando a situação de desconforto que convida a fazer algo diferente. Para encontrar a melhor pergunta, escute com curiosidade as dores dos representantes do sistema que se quer transformar. Em algum momento, a redundância irá aparecer e você estará diante da questão mais mobilizadora para o sistema.
- Monte um grupo organizador: Quem no sistema está realmente incomodado com a questão?
Qualquer movimento de transformação nasce quando alguns poucos incomodados com o status quo resolvem fazer algo diferente. São aquelas pessoas que, nas conversas exploratórias sobre a questão, pareciam mais apaixonadas. Convide-as para formar um pequeno grupo – de 6 a 8 pessoas – que irá organizar um movimento de transformação em torno do desafio estratégico. Tome o cuidado de escolher representantes de diversas partes do sistema e de incluir um executivo da alta liderança como sponsor – de preferência, a pessoa na organização que mais se beneficia do trabalho desse grupo.
- Planeje o movimento: Quem mais precisa ser envolvido?
Refine o desafio estratégico com o grupo organizador e peça para cada integrante identificar e convidar mais 4 ou 5 pessoas que também estariam muito incomodadas com ele e interessadas em resolvê-lo. Este grupo irá constituir o time que irá criar e experimentar as novas ideias. Ainda no âmbito do grupo organizador, conversem sobre o macro-fluxo (principais atividades presenciais e não presenciais). Defina papéis e governança: Sponsor), Grupo Organizador (co-criação e coordenação do movimento), Time de Trabalho (ideação, implementação e avaliação das ações) e PMO (articulação do movimento).
- Pense, crie e experimente: O que iremos fazer para caminhar na direção da solução?
Convide o time de trabalho para um encontro presencial de um ou dois dias, dependendo do tamanho do grupo e da complexidade do desafio estratégico. Uma sugestão de fluxo para esse dia seria: dinâmica de integração; diálogo sobre o desafio estratégico e o sonho/imagem de sucesso; identificações dos temas que, se focássemos mais, nos ajudariam a resolver o desafio; montagem de subgrupos por tema para criar protótipos (pequenos experimentos para serem testados em pequena escala); e próximos passos (como e em quanto tempo será feita a experimentação).
- Avalie e evolua: O que está e o que não está funcionando?
Uma das grandes vantagens do Design Thinking no trabalho das redes colaborativas é que o modo de experimentação libera as pessoas para a ação, ao substituir o modelo mental reinante no planejamento clássico do “certo ou errado?” pela pergunta “funciona ou não funciona?” Enquanto os subgrupos testam seus experimentos em pequena escala (sua área, seu andar, sua unidade, etc), seguindo com o que está funcionando e aprimorando ou abandonando o que não está funcionando, o grupo organizador se divide na função de coaching, apoiando os líderes de cada subgrupo em suas experimentações. Natural que surjam ideias que sejam rapidamente descartadas, assim como outras que se transformem em projetos com alto potencial de solução do desafio estratégico.
- Reconheça e celebre: Como dar um sinal claro de que colaborar em rede é um bom negócio para todos?
O projeto pode prosseguir com um novo ciclo de co-criação ou ideação a partir do aprendizado do primeiro ciclo ou pode terminar com a implementação de projetos numa escala maior. Qualquer que seja o caminho é fundamental criar algum tipo de ritual de reconhecimento e celebração, como forma de pontuar para o grupo diretamente envolvido e para o restante da organização que a colaboração em rede nos fortalece como seres humanos, ao mesmo tempo em que ajuda a organização a inovar e a prosperar.
Artigo publicado por Fábio Betti na edição 46 da Revista Coaching Brasil (Março/2017)